Revista três três #7 - Sintoma

Revista três três número 7, 'Sintoma'

Fernando Mora Ramos


0. nota prévia

navego de cabotagem
nada sei de académico
faço tudo à mão
menos o pão
que compro

1. sem saber o que fazer com três três nas mãos li-a de uma vez em vez de a ir lendo, depois de manuseá-la sem nela entrar, várias vezes, captando os grafismos de modo hesitado, as manchas, o objecto plástico, sem querer resolver — preliminares

2. aos poucos uma ideia de a presentar - de a presentificar, pôr em cena - surgiu-me.

3. ouvi dizer ou li que walter benjamin tinha como desejo superior a ideia de escrever um livro encadeando citações - esse encadeado seria sem autor que fosse mais que leitor, num regime de associações lógicas, contraditórias, de continuidades e rupturas: para que servem os parágrafos? As elipses? E para que servem os saltos, surrealizando, os saltos mesmo altos?

4. e de repente veio vindo o que possa ser o meu romance desta revista: será ? um hipertexto linkado num ler aleatório ou estará feito pela bússola-índice e pelas colagens temáticas que na revista residem — os três trípticos de paisagens gráficas são misteriosos — ou por uma cilada na montagem (em eisenstein fala-se de uma força de atracção, de montagem intelectual de planos para construir um novo sentido)

5. Não será isso a edição? aqui entremeada geneticamente de gestos gráficos, trípticos estruturantes e toda a revista um gesto plástico?

aqui vai a navegação de cabotagem:

és uma pessoa no centro inútil da tua vida
não sabes aquilo que queres
muito menos o brinquedo que és

imitas a triteza dos horários
as filas intermináveis de desgostos
junto aos semáforos pela manhã

proteges-te como podes dos ramos espinhosos de um
chefe
engoles em seco e de uma vez por todas a cada dia
essa vaga ideia que fazes de ti

um almoço bem pior do que o dinheiro
que recebes ao fim do mês
é o teu jantar de um dia inteiro

num pára arranca sem sentido
enfrentas um regresso a casa
onde também não tens ninguém

diz a um TU o paulo josé miranda

diz a tatiana

e EU aqui me sento ao fim do dia
e escrevo
o corpo que não há-de vir
tacteio a presença que me resta
que no fundo só serve para que não me esqueça
da presença que me falta

salto então para o
Peixe de asfalto
de raquel martins
e continuo
agora mais ritmado e lúdico
sintomaticamente sofrendo o mesmo
mal de viver — coisa existencimental

E sonolento, lento, como sempre
ainda não te sentes gente,
lavas os dentes, pões a gravata,
a lógica uma batata,
um gelado de nata, da vida a sucata,
vestes o casaco, pegas na pasta,
nas chaves de casa, do carro,
pensas num café, num cigarro,
fazes tudo mecânico, igual, ordinário.

és uma pessoa no centro inútil da tua vida
parece dizer o paulo jose miranda à raquel
 
em Aquila, a paola, à pergunta do joão serra
em torno do terramoto

- sem centro histórico?
- sem centro, literalmente. Onde vivemos hoje? Na periferia. Mas na periferia de quê? O centro histórico de Áquila era o centro de uma constelação urbana. Onde quer que estivéssemos, sabíamos onde estava a nossa casa, quem eram os nossos vizinhos, onde moravam a família, os amigos.

“Se um sogno ha così tanto ostacoli, significa che è quello giusto”, tem a paola escrito no ombro

só a ficção pode retrabalhar
um vazio insuportável
um luto insustentável
há casos em que a extinção
pura o simples de tudo
não tem reconfiguração posterior possível
nem psicodrama que valha

recomeçar é outra coisa

reconstruir:

Numa cidade deserta e vigiada por forças militares e policiais não deixava de ser surprendente o recurso a correntes e cadeados para reforçar portarias, escreve o joão serra.

salto no texto:
paola — vamos ter um meeting para denunciar a corrupção, o desvio de fundos da reconstrução pela máfia que controla a adjudicação de obras…

um terramoto é uma oportunidade de negócio
é assim que a coisa está estruturada em nome da saúde selvagem de um neo-canibalismo voraz
capital

e aí vem a utopia tecnológica como nova crença laica, chipe em vez de sangue ou sangue chipado? será?

Cresceremos sem fim, na pretensão de uma economia em expansão interminável. Teremos a produção de coisas e o seu consumo alcançados com o menor esforço possível, até chegarmos à geração espontânea
ao teletransporte, à telepatia, ao pensamento que produz um efeito tecnológico. Seremos unos com o mundo, o desejo e a satisfação num abraço de singularidade, o fim do esforço. Todos numa marcha de intersecções imediatas até ao maciço.

pedro mendonça

será o maciço o sintoma da acumulação desenfreda de tudo numa velocidade sempre de ponta
de tudo o que sejam cristalizações de sentidos em profusão no corpo de mercadorias?

já o rato do nuno fragata
sofrendo de ser inquieto
vai em ciladas como ao queijo
e tanto foge de meteoritos
losangolares em quilha
como descobre a estranha chuva
aprisionada numa moldura
já o fumo tem sempre seu fogo
a questão é segui-lo isco
sem pensar nisso
como no trânsito

diz o rato,

a leitura que outros façam do que se revela, que se lixe. Será a deles e só a eles interessa. Agouro de um rato em mergulho.

escreve antes o nuno fragata

[…] importa o meio, estar algures num percurso, manter pontos iniciais e finais escondidos. Sintoma de um produtor: o definir relações com a inquietude.

Ora onde estou eu aqui na três três
perdido mesmo que vigiado
porque vigiados somos todos

o sindrome sintomático
do policiamento absoluto do real
está nos versos de miguel cardoso
comentados por hugo pinto santos

Ao poder de observação, a poesia de miguel cardoso une a disponibilidade para o aparentemente esquecível. São esses predicados que lhe permitem, com uma angulação de grande poder de síntese, fixar
“a tristeza granulada das câmaras de vigilância”.

Agora um salto,

Fixá-lo numa imagem congelada, espectral,“os fotogramas da nossa graça interrompida” (mc), torna mais nítido que tudo perdeu a nitidez e a realidade. E que se reduz a um artefacto da técnica e do audiovisual o fluir do que vive.

Esta é uma outra visão da tecnologia, são os tais dois lados de cada coisa.

Volto ao hugo:

No entanto não existe passividade, nem derrotismo; mas espírito lúcido e tenaz que move estes poemas, impede qualquer crença acrítica.

De novo o pedro mendonça:

Só tem sentido as máquinas ocuparem todo o espaço se isso permitir ao humano abrir um novo caminho, caso contrário vieram substituir-nos.

Intermezzo sobre as grafiplásticas

os traços borrão de nuno fragata na página 19
vistos de lado são exactamente
meia cortina régia
e lembram os veludo pesados
das bocas dos teatros à italiana

as três páginas de borrões simétricos à entrada
sa sandra roda
com um cogumelo atómico na terceira
depois de espuma em relevo
a sair das margens
de um rio de espuma
abrem as hostilidades temáticas
sintoma de mal estar cósmico?
modo de entrar na revistaventura por cima
planetando abstracções de apocalipse
meio aleatórias na grafia manchada
meio conduzidas
na tragédia que se lê, pode ler?

as pinturas do Raúl Perez lembram de Chirico
diz a minha ignorância
imaginando-as com cor são notáveis
de arquitecturas e (des)memória do ser
pós humanidade?

Uma outra Aquila surge aqui
sigo michele rocha

as cidades são espaços desabitados, mas nas construções aqruitectónicas sente-se a presença, o vestígio das pessoas. é um paradoxo, são espaços desabitados, mas ao mesmo tempo profundamente habitados, as pessoas revelam-se na arquitectura e nos objectos de uma forma velada, deixam as suas marcas, vestígios de um tempo diferente deste, onde passado presente e futuro estão interligados

o surrealiasmo é um futurismo ancorado
num tempo que é o tempo dos sonhos, dos pesadelos,
como fonte de escrita
e lá vamos dar ao
sono da digestão que engendra monstros
de júlio mendes rodrigo

O pensamento do corpo consiste simultaneamente numa impressão/expressão de um consciente colectivo ancestral. Este pensamento, parcialmente evidenciado através de imagens oníricas, potencia a emanação de alguns quadros provenientes de uma dimensão surreal.

salto mas não muito,

Actualmente a Psicanálise utiliza sobretudo o jogo das associações “livres” de ideias, tendo praticamente abandonado a análise dos Sonhos. os sonhos, no entanto, permitem-nos redescobrir as dimensões mais profundas do Eu corporal. São a “via régia” do autoconhecimento.

abre-se aqui uma hipótese de conversa
com a joana zózimo?

escreve ela,
Por fim, do ponto de vista do experienciador, o sintoma pode ser positivo ou negativo em si porque significa, por exemplo, que o nosso corpo reage a algo que está mal. O sintoma neste prisma pode ser polissémico, produzir compreensão e solucionar um problema de linguagem.

linguagem em busca de mão
será O QUADRO de As Bap
saudades da manufactura na impressão
nas sujidades pressentidas
e a estória?

e o texto?

diz,

Voltei a procurar
Fiz de tudo um pouco.
Em nada senti vocação.

tremendo auto-retrato
confissão?

tramado é mesmo o fim:

nada restava dele,
a não ser a face da minha mãe.

e fim
daqueles fins que gostamos de desenhar
voltando atrás ao tempo da letra
com tamanho variável
não normalizada
e da grafia livre na página
a fugir das linhas e do a direito
um fim
de muita caligrafia
quase alimentar
como aliás toda a estória
letra grande

que dizer senão que o humor gráfico
é mais alegre e traçado
que a escrita um pouco fatal?
mas direcomos
comficção? ou confissão?
ficção

ora portanto uma
bidisciplina entrelaçada
contraditória
toda bem riscado

como diz na

Economia de Mercado
daniel ferreira

Desde cedo percebi
que essa coisa de não riscar
os livros, como nos ensinam
na escola, é preocupação
primordial de alfarrabista.
Sempre que passo num
ou é para comprar - mesmo
riscado - ou é porque todos livros
têm potencial para o desprezo.
Nunca vendo aqueles
que sublinho, e não é puro acaso.
Prefiro deturpar
Tudo aquilo que aprendi.

Tenho uma revista na mão
fartei-me de a riscar
como podem ver
também não a vou vender
- e conheço alfarrabistas -

se não o tivesse feito perdia-me
são os hieroglifos desta minha cabotagem
que me situam no objecto
e este é uma aventura
que se não fez linear
nem princípio nem fim
revist’objecto
fora dos três actos da peça bem feita
- bem aqui três três                            que podem ser só pura insistência
três estás a ver três
duas vezes três
e nada de somar repetidos

e lá os tentei tirar
procurando a flor e o mal

e agora
suspense:
 
Telefonema-Sintoma

salto

[…]
daqui toda a reciprocidade embate e se fere até ao sangue na inutilidade, para ser refeita
numa linguagem-vereda, alheia e indiferente a toda a decifração, o puro acto sem volta da minha existência
onde nada pode ser nomeado e é claro, onde tudo deve ser reescrito, fora do tempo e contra o tempo, fora da arte e contra a arte

fora disto e contra isto

………..
de Jorge Muchagato
é um programa possível

e agora
como o rato do Nuno Fragata
MERGULHO

quando acordo
voltei ao hipertexto
deixo que o que li me chegue sem esforço
fora dos olhos
não me interessam teorias
nem teses
antes esse antes do conceito que o faz vibrar
sintoma
pré pensamento
é mais vivo
será isso um pouco
a hipocondria alucinante do paulo constâncio
essa intuição sintomática dos desastres do corpo

mas ele resolveu bem sem falar
com a joana zózimo
bem, que sei eu disso?
aqui está a receita

trocar a farmácia pela sálvia, o psiquiatra pelo haxixe; o cardilogista pelo Dr.Sanha;
o incómodo, a obsessão e a dor de cotovelo pelos soporíferos naturais; e por isso acabei denunciando a abjecção que é este andarmos podres sem dizer nada a ninguém.

Como fiquei, eu, o cabotador,
também — por contágio —
um pouco doente
usei uma receita não explícita
para responder ao momento
aspirina sempre latente
que aconselho vivamente

e onde no poema NIAGARA
se escreve

Sei que acham bela a gravidade
dos seios que começam a pender
o aproximar das pernas unidas
no ponto onde acaba o retrato

……….
resolvi espreitar
o portfolio de Bert Stern
e fiquei curado
os seios de Marilyn
são muito mais interessantes
que a saia rodada esvoaçando
e à transparência
de uma seda invisível
ganham beleza indizível

sei que a rima é coxa
mas é terapêutica
experimentem dizer


mergulho de novo como o rato do nuno
que me lembra a avestruz
que mete a cabeça na terra
um Bartleby marsupial

“preferia não o fazer”

Há uma agulha espetada no sofá
onte te sentas. Enquanto não magoar
é porque estás morto,

antónio tavares

morto parece o diamante da capa
lapidado com formas
que lembram uma mulher sentada
estamos habituados a essas imagens
corpos à espera em cidades provisárias
feitas de pano de tenda
precárias
campos de concentrar refugiados

é o que me lembra esta matéria prima
razão do destino
dos terceiros mundos

uma mulher
orfã de tudo
de uma vida
de uma casa
dos seus
de um presente
de um futuro

e no entanto
diamante
lapidado
duro
puro

entram os pânicos

o primeiro

terrorismo
breackfast in bed
servido a frio no quarto
com a elegância
da hotelaria
e não da hostelaria

o segundo
vivíssimo congelado cromático
biosfera ou assim nem tanto

o terceiro
um Platão decapitado
um golpe sujo
na República das Ideias?

em boa verdade
não estive eu para aqui
como o gonçalo
a rodopiar em torno da cauda
como um cão
procurando no objecto
tudo o que ele possa ser
mas mordendo a cauda?


agora o momento desconstrução
aplausos então